É cabível Habeas Corpus contra punição disciplinar?

Nos termos do art. 142, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”. Todavia, tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátria têm consolidado entendimento no sentido de que a vedação constitucional restringe-se ao mérito das sanções disciplinares, não alcançando, portanto, o exame de seus pressupostos de legalidade.

A interpretação sistemática da norma constitucional impõe a aplicação dos princípios gerais do Direito Penal ao âmbito do Direito Administrativo Sancionador, inclusive no que tange às infrações disciplinares militares. Como bem leciona o professor Luiz Flávio Gomes, todas as garantias penais — a exemplo da legalidade, tipicidade, proibição da retroatividade da norma penal mais gravosa, vedação ao bis in idem, proporcionalidade, e culpabilidade — devem ser observadas também nas instâncias disciplinares administrativas.

Dessa forma, embora o controle jurisdicional do mérito da punição disciplinar militar esteja obstado pela norma constitucional supramencionada, nada impede que o Poder Judiciário realize o controle de legalidade do ato administrativo sancionador, especialmente quanto à observância das garantias fundamentais do administrado. Nessa hipótese, revela-se cabível a impetração de habeas corpus, não para análise da conveniência ou oportunidade da punição imposta, mas para o controle da legalidade e legitimidade do ato que a originou.

O habeas corpus é remédio constitucional de natureza mandamental, destinado à proteção da liberdade de locomoção contra ilegalidade ou abuso de poder. Encontra-se expressamente previsto no art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal de 1988, que estabelece: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.”

São, portanto, requisitos essenciais à impetração do habeas corpus:

  1. a existência de violência ou coação real, ou a ameaça iminente de sua ocorrência;
  2. a identificação de um paciente determinado, ou seja, pessoa certa e individualizável;
  3. e a lesão ou ameaça de lesão ao direito de locomoção, que é assegurado constitucionalmente a qualquer pessoa, inclusive aos militares, nos termos do art. 5º, inciso XV, da CF/88.

O habeas corpus é ação de natureza gratuita, conforme dispõe o art. 5º, inciso LXXVII, da CF/88, o qual assegura: “são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.” Além disso, por força do §1º do mesmo artigo, os direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata, sendo, ainda, considerados cláusulas pétreas nos termos do art. 60, §4º, inciso IV, da Constituição Federal, não podendo ser objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente à sua abolição.

Nesse contexto, suscita-se importante reflexão jurídica sobre a vedação expressa contida no art. 142, §2º, da CF/88, segundo a qual “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.” Tal dispositivo foi reproduzido pelo constituinte derivado em relação aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, por força do art. 42, §1º, da Constituição.

Contudo, a interpretação sistemática e harmônica do texto constitucional não permite antinomias. A Constituição deve ser compreendida como um sistema coerente e integrado. Assim, os dispositivos do art. 5º, incisos LXVIII, LXI e XXXV, devem ser interpretados em consonância com o art. 142, §2º, de forma a preservar a força normativa da Constituição e garantir a unidade dos seus princípios.

Nesse sentido, o inciso LXI do art. 5º é categórico ao dispor que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.” Esse dispositivo excepciona, de maneira pontual e justificada, as hipóteses em que a privação da liberdade pode ocorrer sem prévia ordem judicial, como nos casos de transgressão disciplinar militar e dos chamados crimes propriamente militares (como deserção e insubmissão), cujas formas de prisão estão reguladas pelo Código de Processo Penal Militar e pelos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas e das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares.

Assim, embora o mérito das punições disciplinares militares não seja suscetível de análise judicial por meio do habeas corpus, nada impede que se realize o controle de legalidade do ato disciplinar. A jurisprudência e a doutrina são firmes ao reconhecer que o Poder Judiciário pode verificar se houve observância dos princípios da legalidade, devido processo legal, contraditório, ampla defesa e proporcionalidade, o que não implica em revisão do mérito administrativo, mas sim em controle de legitimidade do ato sancionador.

Portanto, o habeas corpus permanece cabível como instrumento processual apto a tutelar a liberdade de locomoção nos casos em que se configure constrangimento ilegal, ainda que a origem do ato seja uma punição disciplinar militar, desde que o impugnado seja o ato em si, por vício formal ou material, e não a conveniência ou oportunidade da sanção imposta.

Dra Rosemeire Moreno

Comments are closed.